Mar Perto

É comum ir até aquela estante e ficar olhando os livros, no corredor mais vazio da biblioteca: o de literatura e história alagoana, acho que é porque ensinam que o carro importado é melhor. Sempre esse livro chamou atenção, resolvi abrir numa página e ler, foi o que bastava: apaixonei-me. De tento ler já pulo linhas que minha mente automaticamente se lembra, as esse texto é especial, não é uma comum junção de vocábulos.
Lembra-me de quando ando pelo centro da cidade olhando os casarios e imagino a atmosfera de 79, não em preto e branco. Imagino as mulheres em casa cuidando dos afazeres e ouvindo no rádio Eliseth Cardoso. Dos homens, nem todos bem vestidos, enchendo as mercearias. Do sino da catedral chamando para a missa. Dessas coisas que não voltam que um papel em preto e branco registra para sempre.
Hoje a cidade é outra, os casarios perderam a identidade, dando lugar ao consumismo, que consome a alma da cidade e a sua essência, hoje é lamentar que a modernidade “vira os olhos” para o passado e uma minoria tenta manter viva a memória.
Mas apreciem esse texto que segue. Uma obra prima de um mestre chamado Ledo Ivo, Alagoano e Maceioense. Que, talvez, em sua na janela de sua casa na Praça Visconde de Sinimbu (até o Visconde já esqueceram) tenha escrito isso.

Mar Perto


Vou por uma rua torta. Sinto cheiro de açúcar, juntamente com o do mar perto. Gaivotas voam sobre os negros trapiches fincados sobre as águas. O oceano que eu sempre via longe, quando o bonde dobrava a curva do Farol, está agora perto de mim. Olho as fachadas dos sobrados, a pintura das janelas descascadas pela maresia e aguaceiros. Nos emblemas do pequeno mundo alfandegário, onde tantas criaturas trabalham em função das estivas e dos dinheiros trazidos pelos navios, minha cidade proclamava a sua vocação oceânica. Os gordos e gosmentos sacos de açúcar a espera dos cargueiros anunciam uma viagem, indicam que Maceió é uma das incontáveis portas do universo
Quem nasce aqui, e respira desde a infância um aroma de açúcar, vento, peixe, maresia, sente que o oceano próximo cola em todas as coisas e seres um transparente selo azul. Os que quiserem ficar passarão a vida inteira movendo-se nas ruas cegas do sol ou atrás dos balcões que guardam réstias de cebolas e fardos de algodão. Mas os que quiserem partir têm sempre ao seu dispor, os navios e o vento do mar. E o mar, luminoso e sonoro – o “surdo mar” cantado por camões – inscreve no escudo invisível de cada vida o emblema da viagem e da aventura. E a língua do mar, grande e esponjosa, lambe todos os sonhos.
No alto da colina, o branco farol de minha terra vai iluminar a noite, quando esta vier esconder as aranhas e lacraias, e os sonhos e os segredos dos homens. Luz branca. Eclipse. Luz encarnada. Os feixes do farol clareiam os telhados enegrecidos pelas chuvas, as ladeiras, os coqueirais que cantam e dançam na noite longa, os mangues onde água e terra se dissolvem, os cajueiros floridos. No universo redondo, entre goiamuns ocultos na lama negra das lagoas e as constelações, entre os fogos de santelmo e os cantos dos galos, o farol de Maceió guia os navios e os homens.
Lugar de permanência e de evasão, minha cidade surgiu dos Maceiós. Por isso, ressoam em sua topografia os nomes de água: Levada, Trapiche da Barra, Ponta da Terra, Vergel do Lago, Bebedouro, Poço, Riacho Doce, Bica da Pedra, Volta D’água.
E vencendo o sono e a distancia, os sonhos e a desolação da noite, vem sempre úmida de orvalho, como um ramo de flor a cantiga memorável


A sempre viva é uma fulô misteriosa
ela é cheirosa, mas porém não tem perfume
Mandei fazer um broqué pra minha amada
mas sendo ele da bonita disfarçada
tinha o brilho da estrela matutina
Adeus, menina, sereno da madrugada

O dia termina, apagando os homens que conversam no meio das ruas ou nas portas dos cartórios e das casas de ferragens. A noite se esvai, dissolvendo as dunas errantes. O trem da Great Western apita, perto e longe ao mesmo tempo. As tanajuras pousam docentemente nas ilhas visguentas. O tempo é um artesão: tece a sua própria toalha de renda de labirinto e embora forje novos desenhos, que a memória infiel vai alterando através dos dias e das noites, jamais conseguirá separar o barulho do mar de todos esses incontáveis rumores terrestres. Em Maceió, entre ilhas inacabadas e navios enferrujados, nunca aprendemos a separar o que é da água e o que é da terra
Vou por uma rua torta. Venho por uma rua torta. Já não sei se é dia ou noite, se caminho junto ao mar odorante ou se afundo os pés na lama negra da lagoa devastada pelos pescadores de sururu. Acima e além da claridade solar da luz do farol, num território intocável, Maceió é, ao mesmo tempo, porto e porta, permanência e travessia, lugar de partida e de chegada, silencio e melodia.


(Ledo Ivo)


No livro Confissões de um poeta de 1979, pg. 39, 4ª edição


Procurei na internet para posta-lo aqui, mas não encontrei, resolvi copiar o texto a mão do livro pro meu caderno, quando terminei lembrei que poderia ter tirado uma cópia. Acho que fui eu mesmo querendo sentir como se estivesse escrevendo-o com minhas palavras. Palavras de um mestre.


Curiosidades sobre a minha cidade: Maceió

Great Wester foi uma empresa inglesa contratada pelo governo brasileiro para implantas no brasil o sistema de transporte público, maceió foi a 2ª cidade do Brasil a ter bondes em circulação
Trapiches são pontes que se extendiam atrás dos armazens do jaragua, elas serviam para o embarque e desembarque de mercadorias antes da existência do porto
Foto da Typografia ocidntal, empresa de irmãos paulistas que se instalaram em maceió em 1910, foto de 1911
E o mais interessante, poque não existe o português da padaria aqui em maceió, é que quando o brasil se tornou independente de portugal houve um movimento popular aqui no estado para expulsar os portugueses residentes em Maceió, muitos foram voluntariamente, mas outros foram forçados a sair, presos no prédio que hoje funciona a Caixa econômica do jaraguá, eles ficaram esperando um navio português
Mais uma, a estatua da liberdade situada em frente ao atual MISA é o único modelo original da estatua americana,uma raridade!! ela foi um presente do seu idealizador para o consul Francês que morava qui em maceió.
a última, o navio que levou a familia real portuguesa de Salvador ào Rio se chamava Alagoas, seu timão pode ser visto na entrada do Instituto Histórico
(Pedro Vítor)

1 O QUE ACHOU DO TEXTO?:

Anônimo disse...

Na caatinga, o homem bicho bate em retirada, carregando apenas trapos, cambaleia. Cai.

(Graciliano Ramos)